terça-feira, 18 de fevereiro de 2014

Página 40

Os questionamentos de Humberto eram comuns, mesmo entre os frequentadores daquela casa. Foi João Guiné que nos convidou a observar com mais atenção o entorno a fim de que nossos paradigmas fossem derrubados: – Olhem filhos – disse o sábio Preto Velho – Mas, olhem com atenção. Não com os olhos do coração, pois esse apesar de permitir um olhar importante, quando usado com excesso nos cega e nos mostra apenas aquilo que queremos ver. Por minutos ficamos calados, apenas observando o trabalho naquela casa: as energias multicoloridas que circulavam o trabalho dos enfermeiros. Eles carregavam macas ocupadas por pessoas que dormiam tranquilamente, e que eram levadas para um veiculo lá fora. Antes, no entanto, tais pessoas eram examinadas por um médico, que dizia qual tipo de tratamento já começaria a ser feito. O médico, um senhor alto, de cor branca e olhos verdes, possuía um sorriso amável e emanava uma energia acolhedora, ele dizia: – Levem este para a casa espírita, pois ele ainda precisa de algumas energias para seu tratamento. Este, o levem diretamente para o nosso hospital. E, assim por diante. Os médiuns no plano físico já estavam indo para seus lares. Depois, alguns ainda seriam convidados a voltar, durante o sono físico, para ajudar noutras tarefas na casa de caridade. Dos pontos de frutas eram ainda retiradas, por uma equipe de índios, suas energias, que ficavam armazenadas em tubos de ensaios e que eram classificadas de acordo com suas qualidades. Já das velas saiam luzes que protegiam o local, formando um centro de força. Apenas depois de toda essa nossa observação atenta, é que o Preto Velho voltou a falar: – É necessário que se observe o modo como a espiritualidade maior faz de tudo para que nenhuma energia se perca, fios. Olhando com muita calma, como os fios olharam agora, nota-se que cada coisa se encaixa perfeitamente ao seu lugar e nada nessa casa é absurdo, ou é? Após uma pequena pausa para pensarmos, Humberto perguntou: – Mas, o trabalho não poderia ser feito mesmo sem esses elementos? E ainda temos o fato dos médiuns fumarem charutos e usarem, ainda que em quantidade pequena, bebida alcoólica. Isso não prejudica o trabalho? Desta vez foi o guardião Felipe que respondeu: – Lembra-se quando Jesus estava no templo e os fariseus questionaram sobre o pagamento de impostos? Qual foi sua resposta? – Dê ao homem o que é do homem e a Deus o que é de Deus – disse Humberto. – Isso mesmo – disse Felipe – pela espiritualidade, o trabalho aqui ocorreria de qualquer forma, mas os homens precisam ainda desses elementos para conseguir manifestar sua fé. Então, o que fazemos? Utilizamos disso tudo, da melhor forma possível. Nas comidas do santo e nos pontos com frutas colocamos as melhores energias e as usamos na cura de enfermidades. Quantos já não foram curados, comendo essa comida sagrada para eles! Das ervas, tiramos energias que são canalizadas para quase todo tipo de problema. Agora, com relação aos cigarros e charutos transformamos suas fumaças em material de limpeza, usamos a essência de tudo quanto se usa tanto nesta casa quanto em outras. Evidentemente, a bebida vem sendo nosso maior desafio, muito embora utilizemos a essência dela para fins de limpeza, antes de ela ser ingerida pelo médium. Contudo, o que prejudica uma casa não é o uso que façam desses elementos – naturais na cultura dos homens e ainda necessários para que eles acreditem mais e/ou de alguma forma se aproximem dos orixás, guias e mentores – mas, sim, o elemento de exagero com que os administram, ou seja, ao fazerem a utilização de tais substâncias. Aliás, a cada dia que passa, as casas de Umbanda vão abrindo mão da simplicidade e desperdiçando alimentos, ou exagerando no consumo do álcool, e, com isso, se perdendo na vaidade. Nós, do lado de cá, a cada dia, trabalhamos para conscientizar os chefes de terreiro e médiuns sobre tais exageros de algumas casas. Desse modo, aos poucos, elas têm retirado dos seus ritos a bebida e diminuído suas oferendas, pois estão entendendo que esses elementos são apenas uma representação de seus orixás e de sua cultura e, desse modo, estão nos ajudando a melhorar a imagem dessa religião que tanto socorre ao próximo. Nesse momento, os olhos do guardião marejaram, pois essa tem sido uma luta constante e árdua por parte daqueles que trabalham do lado de cá do mundo. – João, o que acontece com a casa que exagera nesses procedimentos? – perguntou Humberto. João respirou fundo, olhou para o congar daquela casa, que ainda jorrava energia de amor sobre os que ali trabalhavam e com tristeza no olhar respondeu-lhe com a voz embargada: – Perdem-se, irmão, perdem-se na fé. Tornam-se escravos dos rituais e se esquecem que estão ali para serem servidores do bem e do amor de Oxalá e tornam-se servidores de si mesmo. Podem ser tudo, menos representantes legítimos das religiões afro criadas apenas para o bem maior. Porém, acho que é hora de irmos, pois vocês entenderão melhor vendo... Então, saímos daquela casa de amor e caridade.

quarta-feira, 12 de fevereiro de 2014

Página 39

Após controlar minha emoção – o que não era nada fácil para mim – pude analisar e aprender com aquele lugar tão discriminado pela sociedade e que é transformado em “religião de pessoas ignorantes ou ruins”, pois, segundo o censo comum, “vão ali buscar o mal”. O que víamos, no entanto, era algo totalmente diferente. Tratava-se de um ambiente com uma energia acolhedora e que envolvia a todos, indistintamente. Índios e Pretos Velhos trabalhavam em harmonia e comandavam equipes de socorro tanto aos encarnados, quanto aos desencarnados, ou seja, a todos os que buscavam aquela casa. Naquela noite, a equipe de trabalho era a dos Índios, que fariam o atendimento e a assistência aos encarnados; os irmãos Pretos Velhos se encarregavam dos cuidados no plano espiritual e prestavam socorro aos espíritos que ali chegavam. Eu fiquei do lado de um médium, o qual atenderia com um índio de uma alta legião e muito respeitado no terreiro. O índio trajava um lindo penacho colorido que ia até os seus joelhos, estava vestindo uma roupa branca e ainda carregava um arco dourado amarrado em sua cintura. Algo que também me chamou a atenção: ele usava na cintura um cordão de São Francisco, como aqueles usados por padres franciscanos e que simboliza sua entrega ao trabalho. O médium que recebia sua influência era envolvido quase que por completo por sua energia. A ligação feita pela glândula mediúnica era multicolorida e continha uma força inexplicável. Logo se sentou em frente ao médium uma moça de quase trinta anos e que tinha um rosto bastante sofrido. Ao lado dela estava o nosso amigo Mário, bem como Adélia. – Ôxe, que a filha seja bem-vinda a nossa casa. – começou a falar o índio através do médium. – Ôxe, o que esse pode ajudar a filha? – Olha, irmão, eu queria ajuda. – disse a moça – É que, desde que perdi meu pai e minha mãe, nada dá certo na minha vida. Eles é que me ajudavam e agora estou sozinha nesse mundo. Perdi meu emprego, meu marido quer a separação, não sei mais o que fazer! – Lógico que tudo dá errado, ela abandonou o pai e deixou ele dormir no cemitério. Isso é castigo de Deus! – disse Mário. – Fique quieto homem! Só escute. – disse Adélia. – Ôxe, filha, como você perdeu aquilo que não era seu? A filha acha que as coisas que aconteceram em sua vida, que tudo isso se deu por causa da morte de vosso pai e de vossa mãe, mas esquece de sua responsabilidade. Eles cumpriram, filha, seu tempo na terra e, agora, precisam de paz para conseguir trabalhar no plano espiritual. Os vossos pais não eram pessoas boas, filhas? – Sim, irmão, eles trabalharam muito, me educaram com muito amor, nos deram princípios. – respondeu a moça. – E, então, o que a filha quer mais? Os pais não podem viver sua vida por você, filha. Eis que é hora da filha seguir sua caminhada, tomar o leme de sua vida e ir em busca de crescimento. Os vossos pais sempre estarão do vosso lado em espírito e nos exemplos que deram à filha. Envolvido pela energia dos irmãos que o cercavam e por outro médium que também se aproximara, Mário chorava copiosamente. Assim sendo, a equipe o ligou a esse médium e, como se dizia naquele terreiro, fizeram a puxada. Recebendo desse modo o choque anímico de que precisava para acordar para sua realidade. Uma maca foi colocada próxima de Mário que acabara de despertar para a realidade, uma vez que, normalmente, por esse tipo de técnica, o espírito recebe um choque e, consequentemente, dorme em seguida. Foi isso que aconteceu com Mário que agora seria socorrido e levado à colônia Recanto de Irmãos. – A filha, agora, tem que cuidá de si e trazê para si a responsabilidade dos seus atos e de sua vida – continuou o sábio índio – Não vai adiantá esse aqui, filha, dizer que vai ajudá, nem pedir pra filha acender vela ou fazer um descarrego, se a filha não se ajudá, não mudar a vibração e ainda continuá culpando a morte de vossos pais de trazer problemas pra filha. A moça também estava sendo acordada pelos conselhos do índio e luzes coloridas caiam sobre ela. A filha qué melhorá? – perguntou o índio. – Sim, meu irmão. – respondeu ela. – Então, a filha sempre vai encontrá nessa casa ajuda. Faça o evangelho ou venha aqui. Nessa casa tem evangelho. Ou em outra casa. Ore por vossos pais e mude as vibrações. Que Deus acompanhe a filha, viu? Eu estava impressionado com o trabalho ali realizado e com toda a organização. Os trabalhos estavam chegando ao fim no plano físico, mas nós continuaríamos ali, por algum tempo, aprendendo com os dirigentes da casa de Umbanda. Observamos, por exemplo, que as energias usadas no socorro e na ajuda aos desencarnados, comumente classificadas por muitos como primitivas, eram o que equilibrava as vibrações daquele local. Mas foi Humberto quem perguntou: – Como podem essas oferendas todas – as frutas, as velas e os charutos – ser usadas como material de cura?  João sorriu e disse: – Humberto, como não usar para o bem tudo que temos à mão? Porém, nenhuma folha cai de uma árvore sem que isso seja para a evolução. Venha! Nossa noite será longa, pois aprenderemos muito com nossos irmãos hoje...   

segunda-feira, 10 de fevereiro de 2014

Paginá 38

A casa era protegida por um campo de força de cor verde, que começava dentro do que imaginei ser um ponto para proteção. Logo depois desse ponto, sentado em um tronco de árvore, estava um homem alto, de pele morena e olhos escuros, vestido com uma calça preta e uma blusa vermelha. A sua direita se formava uma grande fila, com espíritos de todos os tipos, e que buscavam atendimento para suas dores. Alguns Espíritos, vestidos de branco e com pranchetas nas mãos, faziam um tipo de triagem e encaminhavam os casos de acordo com suas necessidades. Não pude deixar de notar que, assim como na casa espírita que nos abrigara, ali também era grande o esquema de segurança: formado por índios de lanças e que portavam, cada qual, seu arco e flechas. Nossa comitiva passara pelo campo de proteção sem dificuldades e José se dirigiu ao guardião da casa dizendo: – Laroê, Senhor Tranca Rua das Almas! Deus salve suas forças, irmão! O guardião lhe respondeu: Laroê, Sete Catacumbas, vejo que hoje você é acompanhado por novos amigos e estamos muito felizes em recebê-los em nossa humilde casa. A nossa saudação especial a você, velho Ortêncio. Muito nos orgulha reencontrar alguém que tanto fez por nossa religião e ver que ainda continua na luta. Eu agradeci respondendo: – Eu  me sinto privilegiado por ser lembrado por você, senhor guardião, e ainda mais com tanto carinho. Ele me olhou como se tentasse ler o meu perispírito e me disse: – É, velho amigo, muitas surpresas o aguardam ainda nessa sua caminhada e que apenas está começando. Mas tenha uma certeza, a de que se algum dia você precisar, basta bater o pé três vezes no chão, chamando por mim, e eu estarei lá para te ajudar, velho feiticeiro! – Obrigado – respondi, emocionado pela simplicidade e pelo amor daquele ser tão marginalizado pelas religiões, embora tão respeitado no plano invisível. Entramos no terreiro que acabara de recitar a Prece de Cáritas. Do lado físico, os filhos da Umbanda estavam todos de branco. Como do lado de fora, dentro também tudo era muito simples: o congá era enfeitado com luzes e flores e dali saía energias que banhavam aqueles filhos concentrados no bem. Muitos ainda não tinham noção de suas responsabilidades e, no momento da prece, seus miasmas se desfaziam em uma luz amarela; já outros emanavam luzes azuis do próprio coronário, banhando o restante dos irmãos desse modo, como se fosse uma chuva fraca. Eu não conseguia conter minha emoção e chorava como uma criança. João segurava a minha mão direita. Como sempre, Maria segurava a minha mão esquerda. Foi quando os atabaques começaram a tocar e soou um hino da Umbanda muito conhecido por mim, o Hino de Oxalá: Refletiu a luz divina, em todo seu esplendor. Vem do reino de oxalá onde há paz e amor. Luz que refletiu na terra, luz que refletiu no mar, luz que vem de Aruanda para tudo iluminar. A umbanda é paz e amor, é um mundo cheio de luz, é a força que nos dá vida e sua grandeza nos conduz. Avante, filhos de fé, como nossa lei não há, levando ao mundo inteiro a bandeira de Oxalá. Eu desabei de saudades, afinal, depois de 15 anos, eu ouvia o hino que foi a bandeira que carreguei em minha vida material. Luzes saiam de mim e alguns dos encarnados ali presentes, sentindo minha emoção, choravam com suas lembranças daquele terreiro dirigido pelo velho Ortêncio. Os desencarnados também eram contagiados por minha emoção: Henrique e João igualmente choravam, assim como Maria e, para minha surpresa, até mesmo o guardião Felipe, sempre tão sério e firme, se deixara envolver por aquela emoção que não era de tristeza, mas de amor. Amor pelo meu povo, pela Umbanda e pelos Orixás. Então, o som dos atabaques cessou. No plano espiritual, um soldado, vestindo uma capa verde, e que se encontrava ao lado do congá, veio em minha direção. Pena branca ajoelhou-se e começou a cantar: Ô dá licença, ô dono da casa, ô dá licença, amigo meu. Ô dá licença, Senhor Ogum, deixa eu vadiá, no terreiro seu. O soldado estendeu a mão ao Pena Branca que se levantou e o abraçou com carinho. Ele sorriu e disse-nos: Deus esteja com vocês! Sejam bem-vindos, mensageiros de Aruanda, a nossa casa de caridade.