segunda-feira, 6 de junho de 2016

Livro 2 Página 3

Pensei que André iria descansar após a grande emoção que passara, mas os enfermeiros, logo após tirarem-no do salão, o levaram para uma outra ala do hospital. Agora, nos encontrávamos em um espaço com algumas dezenas de máquinas, que mais pareciam aparelhos de tomografia, porém, apropriada apenas para a cabeça, seu corpo ficava estirado em uma cama enquanto a cabeça  permanecia dentro de um cubo, posto na extremidade. Nela, foram ligados fios que pendiam do tubo, eram tantos que pareciam teias de aranha, sobretudo por suas cores prateadas. Encimando o aparelho havia uma tela de tamanho médio. Ela transmitia o que André pensava ou sonhava naquele momento. Existia uma mesa em frente a uma cadeira, de onde um enfermeiro assistia e tomava nota de tudo que achava importante para o tratamento de André. Isso acontecia ao mesmo tempo com outros espíritos dentro da sala. O trabalho, segundo Mariana, às vezes duravam semanas ou minutos. Então, voltei minha atenção a uma senhora deitada a uns três aparelhos depois de André e, como se diz por aqui, soube logo que nada é por acaso e sempre estamos onde deveríamos estar, fui caminhando lentamente e as imagens de sua tela iam me chamando cada vez mais atenção. Tratava-se de uma escrava negra de olhos de jabuticaba, tinha seu cabelo encaracolado amarrado com uma fita, as vestimentas simples e os pés descalços. Ela cantava em um campo de café, com saudades de sua terra e louvava suas tradições. Ao lado dela uma senhora pedia que parasse, pois naquele dia o Capitão do Mato estava pior do que de costume. Dizia ela: – Filha minha, pare de provocá, em nome de Olorum, pois tu sabe que Justino hoje está com o cão no corpo e te colocará no tronco. A menina ria alto e dizia: – Ah, vó, eles já calam meu corpo, prendem, e fazem dele o que qué, mas meu espírito e meus sonhos de liberdade não serão calados por esses demônios. – Filha minha, tenha paciência, pois Deus olha por nosso povo e logo, filha, estaremos libertos de todo o sofrimento. Antes que terminasse de falar, o chicote de Justino desceu do céu, encontrando as costas de vó Catarina, que caiu ao chão. – Velha maldita, sempre incentivando esses negos fedidos a terem esperança. Ele não parou de bater, enquanto esbravejava: – Olhem malditos o que faz a esperança com vocês! A neta de Catarina em prantos pedia misericórdia para sua vó, que nem na lavoura do café deveria estar mais, devido sua idade avançada. Mas, devido a beleza de Marta, a senhora castigava a todos os que se lhe aproximavam. A senhora era uma mulher boa, mas que se entregava aos sentimentos obscuros de quem vivia se servindo da escravidão e que se misturavam com o ciúmes doentio de um marido boêmio, cuja índole era no mínimo questionável. Seu principal passatempo era violentar as negras de suas propriedades. Já o Capitão tinha uma paixão pela neta de Catarina e a castigava sempre, pois para Justino ela só se deitava com os homens da Casa Grande. Mal sabia ele o quanto Marta sofria com tudo que vivia naquela época de dor e sofrimento. As chicotadas só cessaram quando o braço do feitor cansou e o corpo da velha Catarina já lavado de sangue se encontrava desacordado. Os negros do cafezal passaram a entoar um canto de lamento, sabendo que Catarina dali não levantaria mais. A imagem foi mudando, e logo reconheci meu terreiro em um domingo de consulta: a casa estava, como sempre, cheia daqueles que buscavam auxílio e os conselhos de Oxalá. Eu logo reconheci Catarina sentada, esperando sua vez e acompanhada de Justino que agora era seu marido. Os dois, com a fisionomia muito preocupada, traziam consigo uma criança que logo deduzi ser Marta. Esse era o plano divino: uni-los pelo amor que deveria existir no lar. Juntamente com eles havia uma quantidade de espíritos que os ofendiam e gritavam chamando a agora jovem Catarina e a pequena Marta de traidoras. Logo a família foi chamada a entrar no local em que eu me encontrava mediunisado e, através de mim, Ubirajara, usando o nome de Oxalá, analisou-lhe o caso. Sentando-se, Catarina imediatamente entrou em prantos e segurando minha mão disse: – Oh meu pai Oxalá, tem piedade de nós e nos ajude em nome de Deus! – O que eu posso fazer pela fia? – respondeu Ubirajara. Ainda em prantos, ela começou a contar o que acontecia: – Pai, nós não temos paz! Desde o nascimento de nossa filha, as coisas começaram a andar para trás em nossa vida. Nos primeiros anos de vida, ela foi uma criança normal, mas, ao completar seis anos, ela começou a ter convulsões e ao voltar delas nos agride, não fala coisa com coisa, nos xinga e diz que pagaremos por trair nosso povo. E isso, meu pai, tem acabado conosco, que sonhamos tanto em ser pais. Justino segurava a mão de sua esposa e nada falava. - E o filho? Como se sente com tudo isso? – perguntou Ubirajara. – Eu, meu pai, estou desesperado sem saber o que fazer, às vezes, sinto-me culpado por tudo e tenho vontade de sumir. Já levamos nossa menina em vários médicos, que nada encontram nela. Por um segundo Ubirajara analisou a menina no plano dos espíritos, onde alguns dos seus algozes eram tratados, orientados pela equipe da casa. – Fios, tenham paciência, pois essa é uma batalha a ser vencida com amor. Tem coisas na vida que sempre nos encontrarão, onde estivermos, e é nosso dever enfrentá-las com o coração, cheios de amor. Esta família não se formou por acaso e terá que enfrentar o ódio de outrora com o amor de agora. Esse é o plano do Pai maior! E, dito isso, foi receitado a eles os tratamentos da casa. A tela mais uma vez mudou, e, anos depois, vi Catarina de amarelo frequentando o terreiro junto com seu marido: a filha tinha se tornado uma linda jovem e, da assistência, acompanhava os pais com o sorriso no rosto. Logo, ela também trabalharia sua mediunidade. A tela, por fim, mudou para o dia do meu velório e lá estava aquela família orando por mim: a ainda jovem Marta chorava minha morte junto com os pais, e, dessa vez, eu é que fui tomado pela emoção, sendo sedado e colocado também numa máquina, pois chegara a minha hora, de encontrar-me comigo mesmo...

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